Grande Entrevista

Publicado em Extra Cover

Em conversa com José Nuñez

Estudou Filologia Inglesa. Quando foi a primeira vez que ouviu falar de seguros?

Iniciei os meus estudos universitários concentrando-me no inglês, porque o meu sonho era viajar e conhecer outras culturas. Queria ser piloto comercial e viajar sem parar. Aconteceu que o meu pai deixara de trabalhar numa empresa de construção. Queria voltar a Barcelona. Através de um contacto seu, começou a vender seguros de vida e pessoais. Em poucos anos tinha desenvolvido a sua carteira de clientes, uma agência própria e já tinha uma relação, na qualidade de agente, com uma das principais seguradoras do mercado espanhol. Foi esse o meu primeiro contacto com o mundo dos seguros. Sentia-me atraído pelo espírito de serviço do meu pai, da sua vontade de ir mais longe em prol dos clientes.

Foi a sua ambição de fazer algo maior que o levou a Londres?

Lembro-me do meu interesse inicial no setor, mas não me apetecia dedicar-me ao seguro automóvel ou de habitação. Procurava algo diferente, mais complexo. Por isso, contactei várias seguradoras até finalmente ser contratado pelo Departamento Marítimo de uma seguradora britânica multinacional, que nos anos 90 já era muito reconhecida no mercado espanhol. Claro que esta empresa também tinha uma presença de peso no mercado português. A sede da empresa ficava na City, por trás do Lloyd’s. Seria a porta que me levaria a explorar em maior profundidade este fantástico mundo dos seguros.

Fale-nos dos seus primeiros tempos no seguro marítimo.

Era fascinante. Enquanto apoiava a equipa de Subscrição de Seguro Marítimo, frequentava um mestrado em direito internacional durante a noite que era totalmente compatível com os assuntos que me ocupavam no trabalho. Sentia uma paixão crescente que me levava a aprender mais sobre importações, exportações, a conjuntura económica e como tudo isso influenciava o seguro de transportes.

Pode partilhar alguma história divertida dessa fase?

Aconteceu-me algo curioso pouco tempo depois de entrar no Departamento de Seguro Marítimo. Uma manhã, o meu chefe deixou-me o jornal na secretária para eu o ler. Qual não foi a minha surpresa quando lhe disse que ia esperar pela pausa do pequeno-almoço para o ler e ele replicou que não era necessário. Que eu era dos poucos autorizados a ler o jornal durante o horário de expediente porque tinha de entender perfeitamente a evolução política e económica do mundo e saber se havia algum conflito bélico em curso, porque todos esses fatores influenciavam o seguro de transportes. E eu era muito diligente! Lia o jornal da primeira à última página para me tornar um bom subscritor.

Depreendi da nossa conversa que muitas vezes se encontrou no lugar certo à hora certa e que houve momentos-chave que definiram o seu percurso profissional. Pode falar-nos desses momentos?

Como referi, passar pela fachada do edifício do Lloyd’s nos anos 90 foi um ponto de viragem e uma inspiração. Queria explorar, saber como tal mecanismo perfeito com um histórico de mais de 330 anos, que fornece soluções de seguro ao mundo desde então, poderia funcionar.

A vida profissional concedeu-me o prestígio de ser representante legal do Lloyd’s nos nossos mercados espanhol e português.

O que nos pode dizer dos 9 anos que passou na Commercial Union?

Foram realmente muito interessantes. Aprendi muito e depressa. Tínhamos uma equipa competentíssima e eu gostava muito de mandar faxes para a Venezuela e telexes a Moscovo. Além disso foi a minha primeira experiência no mundo em constante evolução das multinacionais. Lá, consolidei relações que ainda mantenho ao fim de muitos anos. Tinha experiência num departamento de sinistros marítimos, via o outro lado do risco, e participei nos primeiros passos de implementação da Tokio Marine & Fire Insurance em Espanha. Também foi uma experiência de impacto cultural.

A seguir, aceitou um novo desafio no grupo alemão Gerling. Quais foram as principais diferenças que notou?

Foi uma mudança muito interessante graças ao perfil da empresa e dos seus clientes. Lá estava eu numa empresa em que comecei a acumular mais experiência nacional, a lidar com corretoras internacionais, contactar com mais risco empresarial, participar em programas internacionais e aprofundar o conhecimento do mercado português. Foi um grande salto qualitativo.

Segurávamos valores muito mais elevados do que aqueles a que estava habituado. Consolidou-se a minha relação Barcelona-Madrid. Penso que, nessa fase, amadureci enquanto subscritor e quanto à minha experiência internacional, uma vez que estava em contacto com todos os diretores de departamento de seguro marítimo na Europa e formámos um organismo a que chamámos a Comissão de Transportes.

Naquela altura, havia oportunidade de negócio para toda a gente. Lembro-me de atingirmos o nosso orçamento projetado para todo o ano antes do quarto trimestre do ano. Foi uma época muito produtiva.

Viveu a experiência de trabalhar a partir de casa muito antes da pandemia. O que pode partilhar dessa experiência?

Penso que a única coisa positiva que a pandemia teve foi abrir-nos os olhos para uma situação que, se for encarada com disciplina (é preciso tê-la e aplicá-la) nos dá um modelo de trabalho muito eficiente.

Antes da pandemia, era Diretor Comercial de uma seguradora espanhola e trabalhava em casa. Geria uma equipa com mais de 10 pessoas, todas em cidades espanholas diferentes, e mantinha relações com uma rede de mais de 300 corretores por toda a Espanha. Hoje ainda tenho uma relação profissional e uma excelente relação pessoal com alguns deles.

 

Quanto mais talento e quanto melhor tratamos a nossa equipa, tanto mais sucesso. O líder faz-se pela confiança que cria na sua equipa.

Introduziu um Consórcio do Lloyd’s, o Catlin, nos mercados português e espanhol. Fale-nos desse projeto.

Para mim, foi um grande desafio profissional. Creio que sabíamos como construir um legado para os nossos mercados. Para além dos números, a minha missão era servir o mercado nos domínios da reputação, responsabilidade e proximidade. Penso que formámos uma boa escola de profissionais altamente qualificados (hoje, a maior parte ocupa posições de grande responsabilidade), um estilo de proximidade muito diferente do de outros intervenientes no mercado e, para mim, o mais importante de tudo; a honestidade nos negócios.

Ver a empresa a crescer praticamente do nada, abrindo dois escritórios no mercado, em Barcelona e Madrid, com uma equipa que parecia uma família (durante os nove anos e meio de operação da empresa, nenhum colaborador nos deixou) e testemunhar a sua evolução foi uma experiência de trabalho indescritível. Foi pena termos sido absorvidos mais tarde por uma entidade com valores diferentes daqueles que o Stephen Catlin nos tentou transmitir. Sentíamo-nos membros da mesma família.

 

Acredita que estabelecer relações fortes e saudáveis no local de trabalho é mais importante do que o resto. Pode dizer-nos porquê?

É crucial. São as pessoas que nos levam ao sucesso. Constato que existe um défice no que toca a cuidar das pessoas dentro das organizações e é a isso que devíamos dedicar a maior parte do nosso tempo, sinceramente.

Depois de muita experiência numa multinacional, começo a ver muitos casos em que apenas se pretendem manter aparências, e mal sucedidas. Por exemplo, já testemunhei várias aquisições em que o comprador nem se deu ao trabalho de explorar o talento na empresa que adquiriu. Absolutamente um erro.

Quanto mais talento e quanto melhor tratamos a nossa equipa, tanto mais sucesso. O líder faz-se pela confiança que cria na sua equipa. Regra geral, as organizações de hoje têm é falta de líderes.

 

O que o levou ao Lloyd’s?

Estava a preparar a introdução de um Corretor do Lloyd’s em Espanha quando o Juan Arsuaga (anterior CEO do Lloyd’s Iberia) me telefonou para contar que, ao fim de 14 anos, ia deixar a empresa e eu seria um bom candidato para a posição dele. Foi um desafio enorme, dada a influência dele no nosso mercado, mas também era um “comboio” que eu queria muito apanhar. 

Acredito que a minha experiência de ter gerido a operação Catlin e conhecer bem os mercados espanhol e português e, obviamente, ter uma grande rede, foram pontos de destaque quando me candidatei ao cargo.

O processo foi muito intenso. Durante a pandemia. Tudo através de chamadas pelo Teams, com todo o incómodo que isso representa; e diferente de fazer uma entrevista em pessoa. Portanto, somadas as coisas, passei por um processo de dificuldade acrescida.

Ficarei sempre grato ao Juan Arsuaga por se ter lembrado de mim.

 

Entrou no Lloyd’s durante a pandemia. Era estranho liderar uma equipa que nunca tinha conhecido em pessoa?

Estávamos sem dúvida num ambiente de trabalho muito diferente do habitual, mas ajudou-nos a aprender coisas novas que ainda hoje aplicamos diariamente.

 Vivo em Barcelona, mas a sede do meu trabalho é em Madrid. Portanto, naquela altura não podia ir a Madrid mais do que uma ou duas vezes por mês. Queria ir ao escritório, mas estava toda a gente a trabalhar em casa. Chegava a Madrid, ia ao escritório por um dia e não via ninguém.

Tinha a vantagem de conhecer a equipa fantástica do Lloyd’s Madrid há mais de 15 anos e isso ajudou na integração, mas não nos podíamos encontrar em pessoa e demorou algum tempo até poder conhecer presencialmente os membros da equipa londrina ou europeia: um ano e meio após a minha entrada. Não será a melhor forma de começar, mas era uma situação imprevisível e desconhecida para todos.

 

Significa que a MDS foi fundamental para o desenvolvimento da marca Lloyd’s no mercado português desde o início, quando o Lloyd’s decidiu apostar nele.

Durante anos, a MDS foi o único corretor Lloyd’s de origem lusófona, tendo uma relação próxima com a Lloyd’s Iberia. Pode falar-nos um pouco mais dessa relação?

Significa que a MDS foi fundamental para o desenvolvimento da marca Lloyd’s no mercado português desde o início, quando o Lloyd’s decidiu apostar nele.

De facto, vendo a situação de fora, sempre tinha associado a MDS ao Lloyd’s. Acho que foi um sucesso para ambas as marcas. Por um lado, tínhamos o corretor português líder de mercado associado à nossa marca, o mercado de eleição para o seguro especializado, e, por outro lado, o Lloyd’s, que sempre procura colaborar com os parceiros líderes de mercado onde quer que opere. A relação com a MDS sempre foi muito fluida e temos mantido uma cooperação muito saudável ao longo do tempo, trabalhando sempre juntos no sentido de ampliar as oportunidades de negócio.

 

Já tivemos o prazer da sua colaboração com a FULLCOVER em edições anteriores. O que pensa de projetos como este, dedicados à partilha de conhecimento sobre a nossa indústria?

São de importância vital não só para um setor específico, mas para toda a sociedade. A educação é a base dos valores que permitem a uma sociedade progredir e uma alavanca de qualidade para as empresas. Portanto, a chave do sucesso.

Nos últimos anos, têm aumentado as iniciativas de formação e, mesmo no pós-pandemia, com a promoção de seminários online, mas penso que havia uma lacuna significativa na formação e pedagogia dentro do nosso setor. De facto, sugeri que todas as empresas tivessem um departamento de educação.

A indústria seguradora tem uma posição interessante na sociedade, tanto pela sua incidência no PIB como pelo número de pessoas que trabalha direta e indiretamente para o setor. Nunca compreendi os motivos de não haver uma carreira, ou currículo universitário, dedicado aos seguros, ou outros programas de formação com mais relevância.

 

O Lloyd’s sempre se caracterizou pela inovação e adaptação a novas realidades. Num mundo em que emergem novos riscos a cada dia que passa e os tradicionais se tornam mais complexos, que podemos esperar do Lloyd’s? 

Acredito que, para além de ser um mercado de seguro de excelência, a capacidade da plataforma Lloyd’s para enfrentar os perigos intangíveis que vemos na indústria seguradora não tem comparação.

O sismo de 1906 em São Francisco, os ataques de 11 de setembro de 2001, o tsunami que lavrou pelo Japão em 2011 e o conflito que se trava na Ucrânia, para dar alguns exemplos, demonstram a resiliência do Lloyd’s para enfrentar desastres sem precedentes com uma grande reserva de liquidez. Apesar de tudo, no ano de 2023 apresentámos os melhores resultados dos últimos 15 anos e continuamos a desenvolver novas fórmulas de soluções de seguro para fazer face a novos riscos que possam surgir.

 

Adora o montanhismo. Fale-nos da sua maior aventura e dos projetos em que participa.

Sempre tive uma relação estreita com a natureza. Viver em Barcelona significa que, à distância de uma hora de carro, se chega aos Pirenéus; em duas horas, aos Altos Pirenéus. São centenas de trilhos (nevados no inverno) para apreciar e descobrir. Fiz montanhismo, caminhada, esqui e, há cerca de dez anos, comecei a correr nas montanhas. Participei em várias corridas nos Alpes franceses, nas Dolomitas e, claro, nos Pirenéus. Mas também em certos percursos preciosos, menos conhecidos, mais para o interior da nossa costa catalã.

Também participo num projeto de educação que trata de ensinar estudantes a correr nas montanhas. O objetivo é mostrar-lhes um desporto diferente cuja base é o respeito pela natureza e a atividade é uma forma de crescer praticando um desporto no exterior, em que cada pessoa estabelece os seus próprios objetivos e limites.

Quanto à minha última aventura, foi chegar ao acampamento base do Evereste em novembro do ano passado. Foi um percurso relativamente breve, mas deu-me tempo de contemplar aquela região incrível l do planeta, apreciar o trilho mágico até ao teto do mundo e partilhar alguns momentos com uma família nepalesa com quem tinha estabelecido um primeiro contacto para oferecer oportunidades educativas às suas crianças.  

Por último, mas não menos importante, queremos saber da sua paixão pela prática da guitarra. Quando começou? E manteve a chama acesa ao longo dos anos?

Vejo que estão bem informados! Penso que o meu interesse pelo mundo anglo-saxónico começou na juventude. Gostava de dedilhar a guitarra para tocar canções pop inglesas.

Recordo a minha paixão pelas letras e pelas frases melódicas, pelos grupos menos comerciais da década de 80 a meados dos anos 90. Fui instrutor de esqui durante alguns anos e, com o dinheiro das primeiras lições, comprei a minha primeira guitarra acústica.

Devo admitir que nunca aprendi teoria musical nem tive aulas de guitarra. Aprendi sozinho. Era uma forma de não me pressionar. Por isso considero-me um músico frustrado.

Agora tenho uma guitarra eletroacústica e ajuda-me a escapar da vida diária. É um momento íntimo, especial, e tocá-la em frente a uma lareira numa cabana perdida nas montanhas... é uma paz incrível. Que mais se pode pedir da vida?

 

Jose Núñez estudou Filologia e tem um diploma da IESE Business School em Direção Executiva.

É o atual CEO do Lloyd's Iberia e trabalha em Madrid. Aporta mais de 30 anos de experiência e uma compreensão aprofundada dos mercados ibéricos de seguro e resseguro, tendo trabalhado em várias funções de gestão na Commercial Union, Gerling & Catlin.

É também presidente da ASASEL (Asociación de Agencias de Suscripción Españolas de Lloyd’s).

Mais recentemente, foi Diretor Comercial Nacional no Asegrup S.A. em Espanha.

É fluente em inglês e alemão.

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