Dossier Técnico

Publicado em Edição 14

Começar de novo

A pandemia representa uma janela de oportunidade rara mas limitada para refletir, reimaginar e reinicializar o nosso mundo para criar um futuro mais saudável, mais equitativo e mais próspero.

A 1 de janeiro de 2020, as pessoas em todo o mundo celebraram o início de uma nova década com fogo‑de‑artifício, festas, abraços, beijos e vivas a um novo ano, ignorantes da doença que alteraria irrevogavelmente o nosso modo de vida. A Covid‑19 rapidamente alastrou‑se a todos os continentes, fechando fronteiras e nações, confinando quase quatro mil milhões de pessoas às suas casas, paralisando empresas, e destruindo economias e comunidades.

QUE FUTURO APÓS A COVID -19?

Já passou mais de um ano e a luta ainda não foi ganha. As vacinas trouxeram esperança e uma luz ténue ao fundo do túnel, mas ainda há um longo caminho a percorrer. E todos nos perguntamos: algum dia recuperaremos? Como será o mundo depois desta pandemia? Como será a próxima “normalidade”?

Contudo, há quem acredite que a pandemia nos deu uma oportunidade única de pensar em que tipo de futuro queremos. Um desses promotores da mudança é o fundador e presidente executivo do Fórum Económico Mundial (WEF, World Economic Forum), Klaus Schwab. Ao longo dos últimos anos tem-nos avisado de que a economia mundial está em apuros; algo exacerbado pelos efeitos da pandemia sobre a sociedade e que tem salientado a revolução tecnológica e crise ambiental em curso: “A crise da Covid-19 mostrou-nos que os nossos sistemas antigos já não são adequados para o século XXI. Em poucas palavras, precisamos de uma grande reinicialização.”

A INICIATIVA THE GREAT RESET

Em 2020 o Fórum Económico Mundial lançou a iniciativa The Great Reset1 reunindo algumas das mentes mais brilhantes para ajudar a construir um planeta melhor, mais verde e mais saudável após a pandemia.

“A pandemia representa uma janela de oportunidade rara mas limitada para refletir, reimaginar e reinicializar o nosso mundo para criar um futuro mais saudável, mais equitativo e mais próspero”, diz Schwab. É amplamente aceite que a Covid-19 agravou desigualdades económicas e sociais que, se forem ignoradas, tornarão o mundo “ainda menos sustentável, menos igualitário e mais frágil. Temos de construir alicerces inteiramente novos para os nossos sistemas económicos e sociais”, acrescenta.

Mas, para ter sucesso, a sociedade, governos e empresas de todo o mundo têm de trabalhar juntos para construir uma sociedade melhor. “Para chegarmos a um resultado melhor, o mundo deve agir rapidamente e em consonância para renovar todos os aspetos das nossas sociedades e economias, da educação aos contratos sociais e condições de trabalho. Todos os países, dos Estados Unidos à China, devem participar e todas as indústrias, do petróleo e gás à tecnologia, devem ser transformadas. Em poucas palavras, precisamos de uma grande reinicialização do capitalismo”, diz-nos.

A pandemia demonstrou certamente que há potencial para isso. “As populações mostraram uma enorme vontade de fazer sacrifícios em prol da saúde, de outros trabalhadores essenciais e das populações vulneráveis, como os idosos. Muitas empresas tomaram a iniciativa de apoiar os seus trabalhadores, clientes e comunidades locais, numa transição para um tipo de capitalismo participativo a que anteriormente não dedicavam mais do que algumas palavras.” Schwab argumenta que precisaremos de governos mais fortes e eficazes e a participação do setor privado em cada passo do caminho para “construir um novo contrato social que honre a dignidade de cada ser humano”.

UMA AGENDA TRIDIMENSIONAL

De acordo com o WEF, a iniciativa The Great Reset teria três componentes principais:

1. Orientar o mercado para resultados mais equitativos

“Para tal, os governos devem melhorar a coordenação (por exemplo, nos impostos, na política fiscal e regulamentar), atualizar acordos comerciais e criar condições para uma ‘economia participativa’. Num momento em que diminui a base tributária e aumenta a dívida pública, os governos têm um forte incentivo para prosseguir com tais medidas.”

2. Assegurar que os investimentos promovam os objetivos partilhados, como a igualdade e a sustentabilidade

“Ao invés de fazer uso dos programas de despesa em grande escala que muitos governos estão a implementar, bem como de investimentos de entidades privadas e fundos de pensões, para colmatar falhas no sistema antigo, devíamos usá-los para criar um sistema novo mais resiliente, equitativo e sustentável a longo prazo. Isto significa, por exemplo, construir infraestruturas urbanas “verdes” e criar incentivos para que as indústrias melhorem o seu comportamento dentro dos parâmetros ambiente-sociedade-governação.” 

3. Tirar partido das inovações da Quarta Revolução Industrial

“...para apoiar o interesse público, especialmente abordando os desafios sociais e da saúde. Durante a crise da Covid-19, as empresas, universidades e outras organizações uniram forças para desenvolver diagnósticos, tratamentos e possíveis vacinas; estabelecer centros de teste; criar mecanismos para despistar infeções; e prestar cuidados de telemedicina. Imaginem o que seria possível se fossem feitos esforços concertados semelhantes em todos os setores.”

A AGENDA DE DAVOS 2021

Em janeiro de 2021, devido à pandemia, o Fórum de Davos anual teve lugar virtualmente sob o tema “um ano fundamental para reconstruir a confiança”. Com o foco na visão da “grande reinicialização” e no esforço de encontrar uma resposta à crise atual, “que vá além das reformas económicas, a iniciativa apresenta uma visão ambiciosa de um mundo mais inclusivo, coeso e sustentável”.

CAPITALISMO PARTICIPATIVO

O WEF, em conjunto com muitos economistas por todo o mundo, defende há muito a ideia de que o velho capitalismo, focado na premissa da maximização do lucro para os acionistas, já não resulta no mundo de hoje. Chegou o momento do capitalismo participativo (stakeholder capitalism), em que as empresas procuram a criação de valor a longo prazo tomando em conta as necessidades de todos os que nela participam, e as da sociedade em geral. O conceito de parte interessada (stakeholder) não é novo. É discutido há mais de cinco décadas e largamente adotado em países do norte e ocidente europeu, como a Suécia, Dinamarca, Finlândia, Países Baixos, Bélgica e Alemanha. Ao longo do tempo, o conceito evoluiu naturalmente e agora envolve uma abordagem mais global e abrangente, com dois stakeholders essenciais no centro: Pessoas e Planeta.

Atingir a grande reinicialização exigirá uma mudança de mentalidade. Agora, cabe a cada um de nós fazer a sua parte.

PARA UMA ECONOMIA DE EMISSÕES ZERO

A crescente crise climática não desapareceu milagrosamente durante a pandemia e não pode andar longe das preocupações do WEF. Só temos um planeta e corre risco de vida.

2020 foi, juntamente com 2016, um dos dois anos mais quentes de que há registo. Vimos também inundações, as temperaturas no Ártico a subirem o dobro do normal, tempestades tropicais e incêndios (como na Austrália e Califórnia). Portanto, como diz Dominic Waughray, Diretor-Geral do WEF: “Não surpreende que o Relatório de Riscos Globais de 2021 do WEF identifique o fracasso nas ações climáticas, as intempéries extremas e perda de biodiversidade, a par das doenças infecciosas, como os principais riscos globais na próxima década, em termos de impacto e probabilidade.”

Um importante passo em frente foi a decisão do Presidente Biden dos Estados Unidos de readerir ao Acordo de Paris de 2015 para a mitigação das alterações climáticas. Contudo, isso não basta. Deve haver cooperação entre os países e verdadeira ação política para distribuir os custos sociais e económicos de abandonar o uso do carvão dentro dos países, e além-fronteiras. Como diz Waughray: “Só temos até 2030 para nos encaminharmos para uma economia de emissões zero e pró-natureza — algo que devia impelir-nos para a ação.”

CONSTRUIR OS ALICERCES DE UMA ECONOMIA NOVA

Contudo, Kristalina Georgieva, Diretora-Geral do FMI, acredita que podemos ir buscar inspiração às gerações anteriores. “Criaram um mundo melhor no pior momento possível, durante uma guerra. Precisamos do mesmo espírito agora, mas para o mundo pós -pandemia: - construir um que seja mais inclusivo e resiliente.”

Temos de galvanizar aquilo que aprendemos com esta pandemia para melhorar e inovar, construindo um mundo melhor. Nas palavras de Saadia Zahidi, Diretora-Geral do WEF: “Embora nenhuma nação tenha saído incólume da pandemia, os países com economias digitais e competências digitais avançadas geriram melhor o impacto da pandemia sobre as suas economias e cidadãos. À medida que a recuperação toma forma, é necessária uma nova “caixa de ferramentas” com alvos económicos para além do crescimento do PIB para conduzir o desenvolvimento económico numa direção que considere o planeta, as pessoas e as instituições.”

Saadia acredita que os governos e as empresas têm um papel na remediação das fraturas sociais existentes e em recuperar a confiança nas instituições. Como? Menciona quatro aspetos: “O primeiro é formular quadros analíticos que apresentem uma visão sistémica dos riscos e dos seus impactos. Não é suficiente criar quadros e guardá-los para mais tarde; devem ser testados e desafiados continuamente para desenterrar potenciais efeitos em cascata e ângulos mortos. Segundo, os governos devem investir em “campeões de risco” muito conhecidos. Estes stakeholders devem encorajar o pensamento inovador e agir como pontos de ligação entre especialistas e decisores. A terceira oportunidade está na comunicação sobre riscos e, especificamente, em combater a desinformação. Pode-se fazer muito mais, quer a nível das comunidades, quer dos governos para compreender e combater a sua propagação. Finalmente, explorar novas formas de parceria público-privada com vista à preparação face aos riscos pode ajudar a maximizar as eficiências e acelerar a recuperação.”

Contudo, só teremos sucesso através da cooperação. Como diz Børge Brende, Presidente do WEF: “A direção a seguir é a de mais diálogo, mais coordenação e ação coletiva. A cooperação global não é um luxo; é o ingrediente necessário para a recuperação de hoje e a resiliência de amanhã.” A verdade é que esta pandemia já nos mostrou que as pessoas e os governos estão dispostos a unir-se em prol de objetivos comuns e vimos sinais claros de iniciativas transatlânticas, transpacíficas e mesmo sino-europeias.

Uma lição que deve ser aprendida é que todos dependemos uns dos outros, quer se trate de pandemias, alterações climáticas ou desigualdade. Ou nos mantemos à tona ou nos afundamos juntos. Não existe uma solução fixa para os problemas que atormentam a nossa sociedade; cada contexto exigirá uma estratégia específica. Mas os princípios são os mesmos: justiça, transparência e responsabilização.

Atingir a grande reinicialização exigirá uma mudança de mentalidade. Agora, cabe a cada um de nós fazer a sua parte.

Referências

SCHAWB, Klaus, Vanham, Peter - Stakeholder capitalism: a global economy that works for progress, people and planet. London: Wiley, cop. 2017. ISBN 978 -1119756132

BORGE, Brende - How to orient toward globalcooperation. Available https://www.weforum.org/agenda/2021/01/how-to-orient-toward-global-cooperation/

ZAHIDI, Saadia - How to build more resilient countries afterthe Covid -19 pandemic. Available https://www.weforum.org/agenda/2021/01/how-to-build -more -resilient-countries-after-the-covid-19-pandemic/

WAUGHRAY, Dominic - Why we must build a net -zero, nature-positive partnership. Available https://www.weforum.org/agenda/2021/01/2021-the-year-the-real-economy-must-start-building-a-net-zero-nature-positive-partnership/

1 N. Editor - Em português A Grande Reinicialização

 
 
Ilustrações  ©Studio Dobra
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